O cozinheiro
terça-feira, julho 15, 2003
  Um daiquiri com Compay Segundo

A manhã acordara ruidosa em Havana — La Habana, se preferirem. Depois do nosso primeiro pequeno-almoço cubano, numa cafetaria no Paseo Marti (antigo Prado), e de uma curta incursão no casco antiguo, o calor das 11 horas já era tanto que só nos apetecia fugir do Sol de Abril. Seguir as pisadas etílicas de Ernest Hemingway — «My mojito en la Bodeguita, my daiquiri en el Floridita.» — parecia ser pretexto suficiente para entrar num sítio com ar condicionado.

Um olhar rápido para a planta de Habana Vieja e Centro Habana revelaram que o melhor seria mesmo começar pelo daiquiri, por uma questão de proximidade geográfica. Chegados ao Floridita, na esquina da Opisbo com a Av. de Belgica (antiga Monserrate), um porteiro vestido a rigor abriu-nos a porta.

— Dos daiquiris, por favor. A Rosa puxa sempre do seu melhor castelhano. O empregado cheio de nove-horas tomou nota do pedido.

A banda da casa aproximava-se das mesas e tocava a troco de gorjetas. Uma senhora já entradota vendia recuerdos de um dos mais famosos bares do mundo e CDs gravados pelos músicos da casa.

Enquanto os músicos, já velhotes, continuavam o seu périplo pelas mesas, um empregado de casaca vermelha atrás do balcão juntava num liquidificador

3 medidas de rum branco

2/3 de medidas de sumo de lima acabada de espremer

2 colheres de açúcar

4 pedras de gelo

e batia tudo no máximo.

No bar entrou uma horda de turistas que fotografaram tudo e sairam tão depressa como entraram e o empregado verteu o líquido frio e espesso em duas taças de cocktail previamente geladas e trouxe-as até à nossa mesa. Quando os dias estão muito quentes, a lima, o rum, o açúcar e o gelo frio e triturado provocam arrepios ao deslizar garganta abaixo e um calor confortável no estômago.Os músicos aproximaram-se agora da nossa mesa. Perguntaram se queríamos que tocassem algo especial. A Rosa respondeu que sim, que havia um bolero antigo intitulado, pensava ela, Mujer. Os músicos com ar de serem mais antigos que o bolero clássico não conheciam nenhum bolero com tal nome...

As rugas pesadas, descaídas, de quem é um mestre no que toca e, já velho, tem de andar a cantar pirosadas para agradar a turistas, num sítio onde não te deixam entrar o neto, desapareceram quando a Rosa assobiou umas notas do bolero que nós conhecíamos na versão portuguesa dos Corações de Atum, de Lello Minsk (aliás, Manuel João Vieira) & Shegundo Galarza.

Os olhos brilharam-lhe e o rosto abriu-se em sorrisos de satisfação quando identificou a peça do mexicano Alfonso Esperanza Oteu (1894-1950).

— Perfídia?

— Perfídia?!

— Perfídia!!!

O mais novo dos músicos ficou calado.

— Perfídia*, confirmou a Rosa.

— Hace tanto tiempo que no la canto. O ancião do grupo deu o tom e começou a cantar com voz aveludada:

 

Nadie comprende lo que sufro yo;

tanto, que ya no puedo sollozar.

 

Solo temblando de ansiedad estoy,

todos me mirar y se van.

 

Mujer, si puedes tú con Dios hablar,

pregúntale si yo alguna vez

te he dejado de adorar,

al mar, espejo de mi corazón,

las veces que me ha visto llorar

la perfidia de tu amor.

 

Te he buscado por doquiera que yo voy

y no te puedo hallar.

 

Para qué quiero otros besos si tus labios

no me quieren ya besar.

 

 Y tú quién sabe por dónde andarás,

quién sabe qué aventuras tendrás,

qué lejos estás de mí.

 

Foi simplesmente divinal. Uma calma imensa invadiu-nos a mente e os músculos fatigados relaxaram. Estavamos a especular se aquilo seria mesmo o melhor daiquiri do mundo, como garantia Hemingway, quando o porteiro fardado voltou a abrir a porta. Instintivamente a Rosa olhou. E olhou outra vez para confirmar que vira bem. Para ter a certeza absoluta.

— Olha é o Compay! E levantou-se a aplaudir.

Os clientes do bar (todos turistas) abriram alas para deixar passar o velhote impecavelmente vestido e de charuto, seguido de uma equipa de um canal de televisão espanhol. Os músicos da casa começaram a tocar o Chan Chan. A voz de Francisco Repilado, aliás Compay Segundo, acompanhou.

 Os turistas quase afogaram o homem num mar de flashadas, quase o asfixiaram com pedidos de autógrafos.

Calmamente foi respondendo às solicitações, até o realizador decretar o fim do regabofe.

— Estamos trabajando!

E filmaram quando lhe trouxeram o daiquiri. Ele brindou para a câmara, rodeado pelos músicos do Floridita. Bebericou e pousou o copo na mesa. Pediu uma cerveja. Mais umas fotografias e teve de sair, mas antes sacou de um volumoso maço de dólares e distribuiu generosamente algumas notas verdes pelos colegas músicos que não tiveram a sorte de se cruzarem com Ry Cooder.

Quando ele saiu nós, já no segundo daiquiri, não quisemos acreditar. A nossa primeira manhã em Cuba não podia ter corrido melhor. Num bocadinho tocam-nos a Perfídia e temos o Compay Segundo ao alcance da nossa mão...

Noutra ocasião contarei como correu o resto do dia... (com receita, claro).

  

* Não quero ser acusado de poluição sonora da Blogosfera. Por isso, decidi retirar a música de fundo que animou esta página durante quase 25 horas. Podem ouvir um midi da Perfídia em http://ingeb.org/songs/perfidia.html

 

 
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