O cozinheiro
segunda-feira, julho 14, 2003
  A caracolada

Os cabelos ainda molhados, espetados, e as risadas sonoras depois do banho de mangueira junto ao tanque. Os primos correm, rua abaixo, de havainas presas nos dedos dos pés. Shlapp, shlapp... Têm esperança de chegar a tempo de espreitar as raparigas, que — sabem — estão nesse momento a mudar de roupa no quarto da avó.

Chegaram tarde mas as expectativas frustradas não os desanimam. Seguem aos empurrões e aos saltos, rasgando o silêncio ensurdecedor do final da tarde e emudecendo o canto permanente das cigarras. Continuam a corrida, agora para ver quem chega mais depressa ao fundo da rua.

O Sol já fez o seu trabalho nos seus troncos nus de pré-adolescentes. A pele queimada e esticada como num tambor está sensível. Uma palmada. Um grito de dor e a retribuição.

— Toma!

Mais gargalhadas.

Imperturbável, sentado à solheira da porta, o Ti Zé Ribeiro observa a dança dos gaiatos e fuma Provisórios, que anos mais tarde lhe levariam uma perna e, depois, a ele — em definitivo. Esta noite não vai ter a companhia do Mestre Toino, o avô dos rapazes. Sentados a uns 30 metros de distância, cada um junto à sua porta, costumam passar as noites de Verão a conversar.

No outro tempo só falavam da bola, das hortas, dos «gatos dum cabrão, que me dã cabo das cebolas» ou da silicose, que levou ao cemitério mais um moço novo. Agora os assuntos eram inesgotáveis. Já se podiam pronunciar sobre quase tudo. Falavam mal do governo e da exploração dos trabalhadores e das virtudes do socialismo. Esta noite, porém, não iria ser igual a todas. O Ti Zé iria ficar sozinho a fumar.

O mestre Toino conseguira reunir os filhos. Só faltava a mais nova, emigrada na África do Sul. De resto, «vã estar todos na casa do mê Betinho» com as respectivas famílias, à volta de uma mesa tosca que a idade já fazia bambolear. Uma vez colocada no quintal, uma operação comandada por uma das raparigas mais velhas, conferiu-lhe a dignidade necessária para se converter no centro da festa.

O dono da casa e do quintal tinha passado umas horas a lavar litros e litros de caracóis.

— P’ra ficarem bons têm de ser bem lavadinhos. O ranho tem de sair todo. E os que estã mortos deetam-se fora, porque estragam o sabor. O tio Betinho é tido como especialista na lavagem de caracóis e exímio pregador de partidas.

Depois de lavados em abundante água fria, o destino dos bichos é a panela, de preferência alta, onde são cobertos de água fria, na companhia dos alhos (bastantes) e de uma folha de louro. (Há também quem acrescente um osso de presunto ou um pedaço de toicinho).

A panela é, de imediato, colocada em lume muito brando. Acrescenta-se caldo Knorr de galinha, numa proporção de meio cubo para um litro de caracóis (que não se medem aos palmos, mas sim aos litros) e piri-piri a gosto. Depois de o caldo começar a ferver, quaisquer cinco minutos são suficientes para ter os caracóis prontos. Apaga-se então o lume. Prova-se o caldo e tempera-se de sal. A operação seguinte consiste em agarrar um grande molho de orégãos secos, que se segura pelos pés e mergulha na panela dos caracóis, remexendo. Retira-se o molho da panela.

Os caracóis podem ficar a repousar um pouco para tomar sabor mas devem ser servidos ainda quentes.

O Sol deitou-se atrás dos montes. Lá ao fundo, no tanque, coaxavam as rãs e os insectos esvoaçavam à volta das lâmpadas que faziam daquele o mais iluminado quintal de Vale d'Oca. As cantigas alentejanas entoavam e as histórias que o avô Toino contava aos netos mais novos fluiam ao sabor do vai-vem permanente de travessas de caracóis.

Um ai repentino e sonoro, e uma garganta a arfar perturbaram um idílio que Emir Kustorica não se importaria de ter filmado com legendas em serbo-croata.

O tio Casimiro, de olhos esbugalhados quase a saltarem-lhe com os óculos, estava todo vermelho. Suava em bica. Agarrava-se ao pescoço com a mão direita e com a esquerda procurava um copo com líquido.

— Cazmiro respira fundo. Tem calma.

Casimiro obedeceu. De repente ficou pálido. Continuava aflito, porque isto de comer caracóis também tem a sua arte. Há que escolher os maiores e os mais saídos da casca. Leva-se à boca e, enquanto o polegar e o indicador seguram a casca do animal os dentes insisivos prendem o bichinho e chupa-se. Casimiro chupou demasiado bem, por isso foi a vítima aleatória da partida do cunhado.

Na cozinha, Betinho escolhera um lindo caracol graúdo, de casca castanha-clara adornada com riscas perfeitas um pouco mais escuras. Desmontou o molusco e tirou o bicho da casca, que recheou com um pedaço de malagueta. Voltou a colocar o bichinho no sítio, camuflando a armadilha na travessa que levou para a mesa.

Aspirada directamente, a malagueta incendiou a garganta do Tio Casimiro, que se aliviou com uns palavrões acompanhados de cerveja e pão com manteiga.

Todos riram. Ele próprio ainda hoje se ri...

 
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