As finas pernas de José bailavam descontraídas dentro de uns calções azuis escuros. Satisfeito, afagou o farto bigode. Já regara a horta e começara a pôr as mesas. Tinha de convencer os hóspedes a ingerir, além do pequeno almoço, pelo menos uma das refeições principais. Esmerar-se-ia na aquisição da melhor matéria-prima no mercado de Canacona. Não seria difícil à mulher da casa conquistá-los pelo palato — Maria era na cozinha mais milagreira que Santo António no altar de azulejos verdes, brancos, azuis e cor-de-rosa.
Chovia e Maria já podia levar o santo para dentro, juntamente com o cravo vermelho e as velas. Na casa, o dia de trabalho entrara em velocidade de cruzeiro quando os nossos sapatos deixaram as marcas do aguaceiro matinal no caminho de terra batida.
José cumprimentou-nos com um sorriso e explicou o fenómeno atmosférico ocorrido em plena época seca.
— Foi o Santo António que fez chover, disse, com a determinação de um homem de fé inabalável. E contou: se precisa de chuva para a sua horta, situada nas traseiras da casa, leva o santo para fora da casa. Coloca-o sobre o altar, acende umas velas, reza uma oração. O milagre é quase instantâneo. Daí a um bocado, está a chover.
— Quando as minhas plantas têm água que chegue, levo-o outra vez para dentro.
Incrédulo, cocei a cabeça. Teria percebido bem? É que o inglês do indiano católico, apostólico e romano estava ao nível da minha capacidade de raciocinar antes do primeiro café e do primeiro cigarro do dia. Mas José garantia que funcionava sempre. E nós a acreditar nas suas palavras, como acreditaramos na véspera ter chegado ao Paraíso, a uma praia coberta de coqueiros até à água, sob os quais se erguiam cabanas de pescadores. Ali havia pirogas a descansar na areia e porcos, de raça pequena, escura e peluda, a ir ao banho. A Rosa suspirou e, com um sorriso nos lábios, disse:
— Era assim que imaginava Goa.
Em Novembro de 2000, Palolem ainda era um paraíso. Um paraíso com pay phone, e-mail e Internet, com Maria e José de anfitriões numa casa em que Santo António fazia milagres.
José serviu-nos o pequeno almoço, sentou-se connosco a conversar. Seduziu-nos descaradamente. O dono da casa não só ostentava um nome muito português — José João Baptista Rebello — como, de vez em quando, se lembrava de uma palavra portuguesa. Tinha sido um dos poucos goeses a frequentar uma escola portuguesa (no seu caso, até à antiga 3.ª classe), no final da década de 50 e início de 60. Em 1961, quando as tropas da União Indiana puseram fim à «Índia portuguesa», já os números desmentiam a propaganda «lusotropicalista» do Estado Novo: havia mais goeses a aprender Inglês do que Português.
— Bom dia! Boa tarde! Boa noite!, exclamava em rajada e ria.
— Gato, cão, vaca, carro, mulher, homem...
O vocabulário português começou por lhe sair aos solavancos. Mas rapidamente se transformou numa torrente de vocábulos soltos. A nossa presença refrescava-lhe a memória. E ele divertia-se com um chorrilho de palavras há muito esquecidas e silenciadas.
— Cama, cadeira, mesa, arroz... jantar!
Acanhada e silenciosa, sem falar Inglês e muito menos Português— só o konkani local e, presumo, hindi — Maria expressava-se, quase que numa antítese de si própria, através de fogosos sabores. As vacas mais sagradas de toda a Índia eram as que punha no prato dos clientes. Passando pelas suas mãos, a mais dura das galinhas (mais cara do que o mais macio dos bovinos) tornava-se irresistível.
José servia de intérprete:
— Cabrito? Atum? Tubarão?
A cozinha de Maria era um livro aberto, sem segredos escondidos no bolso do avental. Quando, certa noite, eu quis saber como fizera o caril verde, não apontou a receita num papel nem prescreveu quantidades. Porque o que importa são os ingredientes. O resto nasce da intuição do artista, do seu gosto e da delicadeza do gesto do seu pulso. Há mestres que nada ensinam, mas tudo transmitem em silêncio. Só quem intui apreende o ensinamento.
Sorridente, trouxe um prato de inox para a nossa mesa. O metal frio reflectia cores quentes e expunha uma malagueta verde, um dente de alho, um montinho de curcuma moída e outro de cominhos, três cravinhos, uma raiz de gengibre e um pouco de sal grosso. Tudo disposto de forma muito cuidada e ordenada. Havia mesmo algo de estético naquilo.
A confecção, prometeu, é bastante simples: faz-se um refogado de cebola e tomate, ao qual se adiciona a carne ou o peixe. Acrescentam-se as especiarias. E deixa-se cozer sem largar o tacho de vista porque não convém deixar secar o massala (molho).
Para não ficarem a pensar tudo o que acabam de ler é pura ficção, se um dia passarem por Palolem perguntem à Maria e ao José pelo Santo António, e dêem cumprimentos da Rosa. Aqui têm os contactos:
Maria
Bar & Restaurant
with food & beverage
pay phone e-mail & internet
rooms to let — bike & taxi for hire
Ourem Palolem Beach
Canacona
Goa (India)
(0832) 643732
No regresso escrevam ao Cozinheiro e contem como está Paraíso.
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